Coordenador do MEC analisa o grande debate sobre os métodos de alfabetização

Professor Renan Sargiani.

A discussão sobre os melhores métodos de alfabetização não é nova nem exclusividade do Brasil. Há pelo menos 50 anos, esse tem sido o alvo de muitas discussões entre cientistas, educadores e formuladores de políticas públicas de alfabetização em diversos países. Esse “grande debate” sobre o ensino das habilidades de leitura e de escrita tornou-se explícito inicialmente pela pesquisadora Jeanne Chall, professora já falecida da Universidade de Harvard, que publicou, em 1967, nos EUA, o livro Learning to Read: The Great Debate, no qual fez uma intensa pesquisa sobre o assunto e revelou quais abordagens eram mais eficientes para o ensino da leitura e da escrita, concluindo que a abordagem fônica era a mais eficiente. Esse também pode ser considerado um marco que impulsionou diversos países a buscar evidências científicas para embasar suas decisões sobre políticas, programas e ações educacionais.

Nesse sentido, países como EUA, Reino Unido, Canadá, Austrália, França, Finlândia e Portugal promoveram modificações em suas recomendações para a alfabetização, fundamentando-se nas bases da Ciência Cognitiva da Leitura, que consiste no conjunto de evidências produzidas em áreas como a Psicologia Cognitiva, a Neurociência Cognitiva e a Linguística Cognitiva, que, desde os anos 1970, estudam cientificamente como as pessoas aprendem a ler e a escrever e como podemos ensiná-las de modo mais eficiente. O Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, e o Ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodríguez, em consonância com as experiências exitosas na área de alfabetização desses países, também optaram por formular uma nova Política Nacional de Alfabetização com base em evidências da Ciência Cognitiva da Leitura.

O “grande debate” pode ser resumido entre defensores de abordagens centradas no código versus defensores de abordagens centradas no contexto e nos significados. A proposta dos primeiros, que defendem o método ou a abordagem fônica, é a de que se deve ensinar explicitamente as relações entre letras e seus sons, ou seja, entre grafemas e fonemas, no começo da alfabetização. Para eles, os textos utilizados pelas crianças devem ser apropriados à sua capacidade de leitura e à sua idade, ao passo que textos mais longos e complexos devem ser usados apenas pelos professores para a ampliação do seu vocabulário, desenvolvendo-se a oralidade delas. Os segundos, por sua vez, recomendam que as crianças devem interagir, desde o começo, com textos ricos que lhes permitam aprender sobre regras do sistema de escrita de modo mais natural e implícito.

Professor Renan Sargiani.

O coordenador-geral de Neurociência Cognitiva e Linguística do MEC, professor Renan Sargiani, explicou um pouco das metodologias e das abordagens fônicas, além de outras formas de alfabetização, em uma entrevista ao portal do MEC.

1. Por que o método fônico ou fonético pode ser considerado uma das melhores formas de ensinar uma criança a ler?

Renan Sargiani – É muito importante, em primeiro lugar, esclarecer os termos que foram utilizados nessa pergunta que normalmente geram muitas dúvidas e equívocos. Não existe apenas um único método fônico, mas sim vários métodos de ensino de leitura e de escrita que se fundamentam em uma abordagem fônica, isto é, na recomendação de que o ensino de leitura e de escrita deve começar por instruções explícitas em uma ordem sequencial lógica das relações entre os grafemas e os fonemas, ou seja, das letras e seus sons.

Quando se fala de método, fala-se de algo mais delimitado, uma espécie de pacote, criado com um objetivo específico de ensinar um determinado conteúdo, de uma determinada forma, prevista por quem elaborou esse método. Por isso, os métodos normalmente estão ligados a um criador ou a um autor. Por exemplo, o Método Montessori tem esse nome em alusão às pesquisas e às teorias da médica e educadora italiana Maria Montessori. No caso do método fônico, há uma confusão entre método, abordagem e componente.

Abordagens são proposições teóricas mais abrangentes que permitem a formulação de diferentes métodos. A abordagem fônica trata-se do conjunto de recomendações para a alfabetização que priorizam o ensino sistemático das relações entre fonemas e grafemas como sendo o primeiro passo para que se aprenda a ler e a escrever com sucesso em sistemas alfabéticos. A abordagem fônica baseia-se na premissa de que, como o sistema alfabético representa a fala no nível dos fonemas, para que um aprendiz possa ler e escrever, deve-se primeiro conhecer o princípio alfabético, ou seja, o modo pelo qual se organiza esse sistema, em que cada letra ou conjunto de letras das palavras escritas representa sistematicamente os fonemas da linguagem falada.

2. Em que se baseia essa concepção?

RS – As pesquisas mostram que os métodos que se fundamentam na abordagem fônica são os mais eficientes para ensinar-se a ler e a escrever em sistemas alfabéticos, como é o caso do português, porque fornecem a chave do funcionamento do código alfabético. Portanto, existem diversos métodos que se baseiam na abordagem fônica, e não apenas um único método fônico. Da mesma forma, também existem diferentes estratégias de ensino fônico previstas na abordagem fônica: a Fônica Sintética, a Fônica Analítica, a Fônica Embutida, a Fônica por Analogia etc. Cada forma de ensinar a fônica tem suas características próprias e impactos, sendo a fônica sintética reconhecida como a mais eficiente. Trata-se de ensinar às crianças primeiro as relações entre os grafemas (as letras ou grupos de letras) e os fonemas (sons) que elas representam para depois ensiná-las como sintetizar ou juntar essas letras e sons para formar palavras.

As pesquisas, nas últimas décadas, têm mostrado que adotar a instrução fônica é condição sine qua non para aprender a ler a e a escrever em um sistema alfabético, por ser esse um sistema que representa a fala no nível dos fonemas. Com isso, queremos dizer que a relação entre grafemas e fonemas é o que nós chamamos de fônica, conhecimento grafofonêmico, mapeamento ortográfico, princípio alfabético ou conhecimento fônico.

A palavra “fônica” também precisa ser esclarecida e não deve ser confundida com a Fonética ou com a Fonologia. Fônica é uma tradução do termo phonics em língua inglesa. Esse termo é um neologismo também em inglês e foi criado para referir-se ao conhecimento simplificado de fonética que deve ser usado para ensinar a ler e a escrever. A Fonética e a Fonologia são áreas de estudo da Linguística muito mais complexas do que a Fônica. A instrução fônica sistemática é importante porque justamente vai ensinar aquilo que há de mais elementar na aprendizagem da leitura e da escrita de um alfabeto: as relações entre as letras das palavras escritas e os sons das palavras faladas.

Os métodos que se fundamentam na abordagem fônica garantem, portanto, a base essencial da alfabetização, que é a compreensão do funcionamento do código alfabético. Uma criança que aprende quais são as letras e quais são os sons que elas representam ganha um poderoso recurso psicolinguístico que a capacita a ler e a escrever palavras com autonomia.

Nas últimas décadas, vimos o surgimento de uma verdadeira Ciência Cognitiva da Leitura, que, em resumo, mostra que a instrução fônica sistemática — e é essa a terminologia mais apropriada — é um componente crucial para o ensino eficiente de leitura e de escrita em um sistema alfabético. Esse componente é o que oferece melhores condições de sucesso na alfabetização para a maioria das crianças, especialmente aquelas que estão em situação de vulnerabilidade social e que precisam do ensino explícito das relações entre letras e sons para avançarem mais rapidamente no processo de alfabetização.

3. Então o que podemos estabelecer como fônica?

RS – É preciso esclarecer que a instrução fônica é apenas uma etapa do processo de alfabetização. Como uma etapa, ela tem duração, com começo, meio e fim. Podemos dizer então que a fônica não é um método, mas sim um componente de métodos, programas ou abordagens de alfabetização que são eficientes. Todo bom programa de alfabetização inclui diferentes componentes e práticas.

A instrução fônica sistemática é um dos componentes essenciais, bem como a consciência fonêmica, a fluência de leitura oral, o ensino de vocabulário e a compreensão de textos. Entre as práticas, estão a leitura compartilhada, a leitura em voz alta, a leitura guiada, a escrita independente e a escrita compartilhada.

As pesquisas mostram que, desde a educação infantil, devem ser desenvolvidas habilidades fundamentais para a alfabetização. Essas habilidades facilitam todo o processo de alfabetização. Entre elas se destacam duas habilidades: a consciência fonêmica e o conhecimento alfabético.

A consciência fonêmica é uma sub-habilidade da consciência fonológica. Ela é a habilidade de prestar atenção, de identificar e manipular, individualmente, os menores sons da fala, isto é, os fonemas, sendo um dos melhores preditores do sucesso na alfabetização. As professoras podem fazer vários jogos divertidos, lúdicos, que estimulem o desenvolvimento dessa consciência dos fonemas, que não se desenvolve naturalmente. Além disso, ainda na educação infantil, é importante que as crianças aprendam o conhecimento alfabético, que é conhecimento sobre os nomes, as formas e os sons das letras.

O conhecimento alfabético e a consciência fonêmica, juntos, formam a base para que as crianças possam aprender a ler e a escrever em um sistema alfabético.

É preciso esclarecer também que ler não é compreender, mas que o objetivo da leitura é a compreensão. É um erro achar que apresentar textos longos e complexos, desde o começo da alfabetização, é a base para que a criança desenvolva a compreensão de textos. Na verdade, a compreensão de textos depende tanto de uma boa habilidade de reconhecimento de palavras quanto de uma boa compreensão da linguagem oral. O reconhecimento automatizado de palavras acontece quando a decodificação é proficiente, permitindo que os leitores reconheçam imediatamente as palavras que já leram antes. Isso libera espaço na memória de trabalho permitindo processos cognitivos e linguísticos complexos envolvidos na compreensão de textos, entre eles a compreensão da linguagem oral.

A compreensão da linguagem oral é mais ampla e desenvolve-se desde o nascimento. Depois de aproximadamente 150 milésimos de segundos que uma palavra escrita é reconhecida visualmente, ela é tratada no cérebro como se fosse uma palavra ouvida. Portanto, a compreensão de textos, depois do reconhecimento da palavra, envolve o mesmo processamento de compreensão da linguagem oral.

Por essa razão, na educação infantil, e mesmo na alfabetização no primeiro ano do ensino fundamental, os textos longos e complexos devem ser lidos pelas professoras, estimulando a motivação pela leitura, o desenvolvimento de vocabulário e a compreensão da linguagem oral. As crianças, por sua vez, devem receber livros e textos apropriados para a sua idade e o seu nível de leitura para que possam praticar a decodificação, levando-as ao reconhecimento automatizado de palavras e, por fim, possibilitando a compreensão de textos.

4. Há outro ou outros métodos ou abordagens consideradas tão eficazes quanto o método fônico na alfabetização de crianças?

RS — A questão da eficácia ou da eficiência dos métodos ou das abordagens de alfabetização envolve diferentes fatores. Fatores como quem ensina, como se ensina e para quem se ensina podem influenciar muito independentemente do método ou da abordagem que se escolha; de modo geral, podemos identificar características que são consideradas fundamentais para facilitar a aprendizagem da maioria das crianças.

Existem diversos relatórios nacionais e estrangeiros, bem como estudos de revisão da literatura científica, que atestam que a abordagem fônica, a qual privilegia o ensino explícito e sistemático do código alfabético no começo da alfabetização, é mais eficiente do que a abordagem global, também chamada de construtivista ou de psicogênese da língua escrita aqui no Brasil. A abordagem global privilegia os contextos significativos, usando, desde o começo, textos longos que são úteis para o desenvolvimento da oralidade, mas que não explicitam as relações entre letras e sons, sendo eficientes apenas para aquelas crianças que já possuem ampla experiência com materiais de leitura, que conhecem as letras e os sons porque aprenderam em casa ou em outros ambientes.

5. Como acontece o processo de aprendizagem de leitura? O que seria mais apropriado?

RS – Quando uma criança que está aprendendo a ler e que ainda não é capaz de reconhecer a maioria das palavras de um texto depara-se com textos longos, na verdade, isso aumenta a sensação de incapacidade dela. Esse contato, portanto, torna-se um problema em vez de uma solução. O correto é fornecer à criança um texto apropriado para o seu nível de leitura, que permita que ela possa exercitar aquilo que está aprendendo e se sinta, cada vez mais, confiante e com vontade de ler textos mais extensos. Os textos longos não devem estar ausentes no processo de alfabetização, mas, pelo contrário, devem ser usados pelas professoras e pelos pais para estimular a linguagem oral, enriquecer o vocabulário, estimular a compreensão oral e o gosto pela leitura nas crianças.

Nesse sentido, a abordagem global ou construtivista, na verdade, deixa a maioria das crianças à mercê da sorte de que encontrem, em casa ou em outros ambientes, que não a sala de aula, alguém que as ensine o que a abordagem fônica ensina desde o começo, que é a base para aprender a ler e a escrever.

Chamamos de corpo docente oculto esse fenômeno de crianças que suspostamente aprendem na escola por meio da abordagem global, mas que, na verdade, são ensinadas pelos pais ou por irmãos mais velhos em casa. Perceba que, dessa forma, não significa que a abordagem global ou construtivista não funciona, mas sim que ela não é a recomendada para a maioria das crianças que possuem poucos conhecimentos e habilidades necessárias para aprender a ler e a escrever quando ingressam na escola, e que, muito provavelmente, também não terão a sorte de encontrar um corpo docente oculto, ou seja, alguém que as ensine fora da sala de aula.

As evidências de pesquisas mostram que quanto menos uma criança sabe sobre habilidades fundamentais de alfabetização mais ela depende do ensino explícito ofertado pela professora, havendo a necessidade, portanto, de que as professoras utilizem sim abordagens mais eficientes, e não quaisquer abordagens, o que nesse caso seriam as abordagens fônicas.

As habilidades fundamentais para a alfabetização, também chamadas de precursores, são aquelas que as crianças desenvolvem antes do ensino formal de leitura e de escrita. Entre elas, podemos citar habilidades como a consciência fonológica, a consciência fonêmica, o conhecimento alfabético, a aquisição de vocabulário e a familiaridade com livros. Essas habilidades devem ser estimuladas, tanto em casa quanto na educação infantil, e formam a base para o sucesso na aprendizagem da leitura e da escrita no primeiro ano do ensino fundamental.

Bons programas ou métodos de alfabetização devem incluir esses componentes e normalmente são chamados de programas balanceados, completos ou abrangentes, porque incluem as diversas habilidades necessárias para aprender-se a ler e a escrever — entre eles se inclui a instrução fônica sistemática.

É importante ressaltar que, embora a abordagem fônica comece pelo ensino sistemático das relações entre letras e sons, ela não se resume a isso porque ela também inclui vários outros componentes importantes que permitem a formulação de programas balanceados.

6. De uma forma sintética, qual seria a diferença entre as abordagens fônica e construtivista?

RS – O principal diferencial entre a abordagem fônica e a abordagem construtivista é que a primeira foca no ensino explícito das relações entre letras e sons, ao passo que a segunda foca mais nos significados, no texto, no contexto, deixando o ensino das relações entre letras e sons de modo mais implícito e acidental, o que não é tão eficaz para a maioria das crianças.

Na abordagem fônica, primeiro você ensina o código alfabético — letras representam sons — e aí você vai enriquecendo esse conteúdo com outros textos mais complexos. Quando se comparam essas duas abordagens, há evidências de que a fônica supera a construtivista. Aquela supera esta para crianças com desenvolvimento típico e atípico, para aquelas que possuem um ambiente que desfavorece a aprendizagem e também para aquelas que possuem o ambiente mais favorável.

Entre as diferentes formas de ensinar-se a fônica, também observamos vantagens de um modo para outro. A Fônica Sintética (dos fonemas para as palavras), por exemplo, é melhor do que a Fônica Analítica (das palavras para os fonemas) e a Fônica Analítica é melhor do que a Fônica Embutida (instrução não explícita embutida em textos).

O que as pesquisas mostram é que não há questionamentos de que, para aprender a ler e a escrever, em um sistema alfabético, é necessário aprender fônica. O debate está no modo como se deve ensinar isso, de forma explícita ou implícita, sistemática ou não sistemática. As evidências mais vigorosas apontam que isso deve ser feito de modo explícito e sistemático, o que não significa que deva ser chato e enfadonho: pode ser lúdico e muito divertido, como vários métodos e programas que existem em diferentes países.

O que temos de deixar claro é que não há um único método fônico e que o conhecimento de fônica é um componente de métodos eficientes de alfabetização que nós costumamos chamar de abordagens balanceadas ou compreensivas, no sentido de que elas incluem diferentes componentes necessários para o sucesso na alfabetização, ou seja, a instrução fônica sistemática, a consciência fonêmica, o vocabulário, a fluência e a compreensão.

7. Como considerar as vantagens de aprendizado do método ou das abordagens fônicas sobre outros métodos?

RS – Primeiramente, nós temos de considerar que a ciência está em contínua evolução. A cada dia que passa, nós descobrimos coisas novas que nos impelem a modificar crenças passadas. Atualmente, as pesquisas desenvolvidas, nos campos da Psicologia Cognitiva e da Neurociência Cognitiva, que são dois dos maiores aportes da Ciência Cognitiva da Leitura, revelam coisas que não sabíamos 20, 30, 50, 100 anos atrás. As pessoas ensinam as outras a ler e a escrever há pelo menos 7 mil anos, mas hoje temos condições de investigar o impacto de diferentes modos de ensino com recursos muito sofisticados. As pesquisas em Neurociências mostram, inclusive, o que acontece, em tempo real, no cérebro enquanto estamos lendo ou aprendendo a ler.

Essas evidências nos mostram que herdamos da evolução da espécie um cérebro capaz de aprender coisas novas, por meio da plasticidade neuronal, ou seja, por meio da reorganização das conexões entre neurônios. Nosso cérebro não nasce programado para ler e escrever, coisas que são invenções culturais mais recentes, mas sim predisposto a aprender coisas básicas que os homens das cavernas já faziam, como falar, ver e ouvir. A plasticidade neuronal que nos permite reorganizar esses sistemas a fim de que possamos aprender a ler e a escrever.

Os sistemas de escrita têm cerca de sete mil anos, dez mil anos no máximo, a fala não: ela é mais antiga. A linguagem oral foi desenvolvida na espécie humana há muito tempo, tanto que você não pode impedir uma criança de aprender a falar. Em condições típicas, mesmo com pouco estímulo, uma criança aprende a falar. Se ela tiver todo o aparato biológico para aprender a falar, ela vai aprender a falar.

8 – O que dizem os especialistas sobre o assunto?

RS – O Steven Pinker, que é um professor da Universidade de Harvard (EUA), diz que esse é o “instinto da linguagem”, instinto porque é algo tão forte na espécie humana que você não pode evitar de aprender a falar. Isso faz o nosso cérebro aprender muito rapidamente a linguagem oral, mas o mesmo não ocorre com a linguagem escrita, tanto é que você pode ser um analfabeto na idade adulta mesmo convivendo com o “mundo letrado” a vida toda, e isso não significa que você tenha qualquer tipo de problema de aprendizagem. Também não significa que os adultos que não aprenderam a ler e a escrever na infância não podem aprender na idade adulta: nós temos evidências de que o que importa de fato para que uma criança possa aprender a ler e a escrever é o ensino que ela recebe. Prova disso é que crianças com os mais diferentes tipos de necessidades podem aprender a ler e a escrever. Todos podem aprender essas habilidades desde que lhes sejam dadas condições apropriadas de ensino. As pesquisas mostram que o modo como você ensina tem um papel muito importante no processo e que ele pode ser até mesmo determinante para o sucesso ou não da alfabetização. A Ciência Cognitiva da Leitura tem nos mostrado então quais são as condições necessárias ou os elementos que favorecem mais o sucesso na alfabetização.

A linguagem escrita é uma invenção e precisa ser ensinada, não descoberta. Não dá para uma criança descobrir a escrita sozinha na sala de aula: ela precisa aprender, e aprender a mesma linguagem escrita que é convencionada com os demais ao seu redor.

Os estudos de Neurociências, principalmente do pesquisador francês Stanislas Dehaene, mostram que o cérebro da criança é muito bem estruturado porque herdamos da nossa evolução redes cerebrais especializadas para processar a visão, os rostos, a linguagem falada, os números, mas não a leitura e a escrita. É a reciclagem neuronal, a capacidade dos neurônios de aprender, que nos permite aprender.

Em um estudo do professor Dehaene, com a participação do professor José Morais, um pesquisador português muito importante e conhecido no Brasil, que trabalha na Bélgica atualmente, descobriu-se que existe uma área no cérebro chamada Área da Forma Visual das Palavras. Eles testaram uma série de estímulos visuais para verificar se existia uma área do cérebro que respondia ao reconhecimento das letras e perceberam que, nos adultos que eram alfabetizados, seja na infância ou na idade adulta, essa área era mais ativada em resposta a estímulos como letras, mas não era tão ativada para pessoas que eram analfabetas. Essa área se especializa então para o reconhecimento de palavras escritas, sendo que, em analfabetos, ela responde mais pelo reconhecimento de faces, de rostos.

Quando a criança está aprendendo, ela está mudando essa área do cérebro para reconhecer as letras sempre da mesma forma. Isso é uma das coisas que a gente observa também como resultado direto dos métodos usados para alfabetizar.

Em um estudo mais recente, de 2015, um grupo de pesquisadores da Universidade de Stanford (EUA), liderado pelo professor Bruce McCandliss, descobriu que leitores iniciantes que focam nas relações entre letras e sons, ou seja, no escopo da fônica, aumentam a atividade na área do cérebro que é melhor preparada para ler, a saber, o hemisfério esquerdo, enquanto aqueles que focam nas palavras como um todo, abordagem global, ativam mais o lado direito que processa as palavras como imagens.

Eles perceberam que aqueles que aprenderam pela abordagem fônica conseguem ler palavras novas mais facilmente porque eles aprenderam o mecanismo de funcionamento do sistema alfabético, enquanto o grupo que aprendeu globalmente não consegue progredir para palavras novas porque eles identificam a palavra como uma figura, e isso não permite o reconhecimento de palavras novas.

Isso nós já sabíamos, por meio dos estudos de comportamento, mas o que nós não sabíamos era o efeito disso no cérebro, o que foi pioneiro nesse estudo. Isso nos dá mais uma evidência da vantagem da abordagem fônica sobre a abordagem global ou construtivista. Além de a abordagem fônica permitir que a maioria das crianças aprenda mais rapidamente e melhor, ela também as permite desenvolver a autonomia de leitura e de escrita por meio da ativação do hemisfério esquerdo do cérebro, responsável pelo processamento da linguagem, sendo, por isso, aquela mais ideal a ser usada.

Se você aprende pela fônica, você consegue aprender o mecanismo básico da decodificação de palavras; portanto, você lê palavras novas que não lhe foram ensinadas. A criança passa a ler palavras em outros contextos porque aprendeu como funciona a leitura. O global não permite essa autonomia: como há muito mais palavras para memorizar do que letras, e como a criança é ensinada a tratar palavras como figuras, o seu desenvolvimento da leitura e da escrita é limitado e dificultado.

9. Onde estão as recomendações para o aprendizado do método ou das abordagens fônicas nas escolas do país?

RS – A instrução fônica é um componente eficiente de bons métodos de leitura e de escrita e já é recomendada em diversos relatórios de pesquisas nacionais e estrangeiros. Aliás, ela já está prevista até mesmo na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), em que foi estabelecido, nos primeiros anos do ensino fundamental referentes à alfabetização, que se deve trabalhar com consciência fonológica, com o ensino de letras e com o ensino da natureza do sistema alfabético e das relações entre fonemas e grafemas com o objetivo de decodificá-los, que é justamente aquilo que se recomenda em uma abordagem fônica.

O Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC) e o Programa Mais Alfabetização também já contêm esse tipo de perspectiva embutida de certo modo, principalmente com os jogos de consciência fonológica. Muitas escolas da rede particular utilizam esses princípios e iniciativas de alguns Municípios e Estados também fazem esse tipo de recomendação.

Esses documentos, como a BNCC, precisam somente ser esclarecidos para que possamos ter objetivos educacionais mais claros e estratégias de ensino apropriadas. Nesse sentido, precisamos agora esclarecer melhor os conhecimentos que já são recomendados e que inclusive já fazem parte das ações de professoras por todo o Brasil. Não estamos falando de algo que as professoras nunca viram: elas conhecem isso e já fazem uso disso há muito tempo e com sucesso. Eu conheço muitas professoras pelo Brasil que já utilizam esses conhecimentos em suas práticas e com muito sucesso. Se você perguntar para professoras alfabetizadoras o que elas fazem para ajudar as crianças a ler e a escrever, muitas vão relatar práticas fônicas, ainda que não usem esse nome.

10. O que pode ser feito agora? Qual a postura que se deve adotar?

RS – Precisamos valorizar aquilo que as professoras fazem em sala de aula e o que elas sabem que funciona, mas que, algumas vezes, devido ao caráter nebuloso de algumas recomendações, parece que não é feito ou que não pode ser feito. Precisamos adotar uma postura de cientistas e definir mais claramente os conceitos e termos utilizados nas orientações curriculares, nos programas e nas ações do governo, além de, é claro, fundamentarmo-nos no conhecimento científico mais atual.

É justamente nesse sentido que, na Secretaria de Alfabetização do MEC, temos uma diretoria de alfabetização baseada em evidências. O que acontece é que, fundamentando as orientações curriculares em evidências científicas, sabemos exatamente do que estamos falando, o que significa cada conceito, cada objetivo e como definir uma estratégia clara para atingi-lo. Países que tiveram sucesso fizeram exatamente isso. A dificuldade maior agora está mais em esclarecer o que é a fônica, porque, até agora, no Brasil, tem-se a ideia errada de que o chamado “método fônico” é voltar ao passado, é o ensino tradicional, antiquado, quando isso não é verdade.

Nós nunca adotamos uma perspectiva fônica oficialmente no Brasil: os métodos antigos eram a abordagem alfabética e a abordagem silábica. Ambas eram diferentes da abordagem fônica. A abordagem fônica, pautada pelo conhecimento científico, tem se desenvolvido mais desde a década de 1980, mesmo período da chegada da abordagem construtivista da Emília Ferreiro no país; no entanto, a partir do que sabemos atualmente, podemos abarcar conhecimentos da abordagem construtivista, ir além dela e superá-la por meio de uma base mais sólida por meio da qual a maioria das crianças se beneficiem. Temos um grande conjunto de evidências produzido no Brasil. Não precisamos ir muito longe. Existem várias experiências exitosas no Brasil que atestam a importância do ensino fônico e que mostram que não é nada chato, antiquado: pelo contrário, as crianças gostam e muito dele.

11. Em quais países se destaca a alfabetização por meio do método fônico? Por quê?

RS – Os países que de fato melhoraram a alfabetização de suas crianças, nos últimos anos, são aqueles que se fundamentaram nas evidências mais atuais da Ciência Cognitiva da Leitura porque essa área apresenta o conjunto de evidências mais vigorosas sobre como as pessoas aprendem a ler e a escrever e como podemos ensiná-las de um modo mais eficiente.

A maioria desses países começou a adotar as recomendações dessa área na Ciência a partir do final da década de 1990, quando esse campo estava começando a amadurecer, uma vez que se iniciou por volta da década de 1970. A França, por exemplo, criou um grupo de cientistas chamado Observatório Nacional da Leitura, em 1997, e reformularam as práticas de alfabetização no país com sucesso, com recomendações de instrução fônica.

Nos Estados Unidos, a recomendação da instrução fônica, com base em evidências de pesquisas, teve como maior defensora a professora Jeanne Chall, da Universidade de Harvard, que publicou no país, em 1967, o livro Learning to Read: The Great Debate, no qual fez uma intensa pesquisa sobre o assunto e revelou quais abordagens eram mais eficientes para o ensino da leitura e da escrita — ela realizou inúmeras pesquisas e recomendou a fônica até o fim de sua vida.

Outros relatórios importantes também tiveram considerações semelhantes nos EUA, como o Preventing Reading Difficulties in Young Children, de 1998, que é um relatório que foi coordenado pela Catherine Snow, que é uma grande especialista em linguagem e alfabetização e minha supervisora de pós-doutorado na Universidade de Harvard. Nesse relatório, foram identificados quais são os elementos essenciais para ensinar-se com qualidade alunos a ler e a escrever e o que os professores devem saber para fazer isso com sucesso.

Esse painel foi seguido pelo National Reading Panel, em 2000, que mostrou que nós temos cinco pilares de alfabetização de qualidade: a consciência fonêmica, a instrução fônica sistemática, a fluência de leitura, o vocabulário e a compreensão de textos. São pilares que todos os programas bons de alfabetização devem incluir. A minha co-orientadora de doutorado, a Dra. Linnea Ehri, da City University of New York, liderou os trabalhos sobre consciência fonêmica e instrução fônica do National Reading Panel, publicando sínteses muito importantes e influentes na área.

Seguiu-se outro relatório, publicado em 2009, chamado National Early Literacy Panel (NELP), que focou mais nas crianças pequenas e na importância da literacia familiar, ou seja, naquilo que os pais fazem em casa e que ajuda as crianças mais tarde a aprender a ler e a escrever, por exemplo, ler para seu filho e estimular o seu desenvolvimento da linguagem oral, fazendo-lhe perguntas que estimulem uma resposta mais completa do que apenas um “sim” ou um “não”. O relatório focou também na literacia emergente, que reúne as habilidades fundamentais para a alfabetização que devem ser desenvolvidas na pré-escola, como saber os nomes, os sons e as formas das letras e desenvolver a consciência fonológica e a consciência fonêmica.

12. Em que sentido esses relatórios orientam os governos?

RS – Nos EUA, esses relatórios impulsionaram várias ações e programas dos governos Federal e Estaduais, com recomendações para a inclusão de instrução fônica. A Inglaterra tinha resultados muitos ruins na alfabetização na década de 1990, e, depois de alguns relatórios, como o Relatório de Jim Rose, de 2006, passou a recomendar, desde 2012, a instrução fônica nas escolas de todo o país, com melhorias muito significativas.

Existem muitas diferenças entre cada país e é preciso que nós consideremos isso, incluindo diferenças com relação à língua, mas é preciso reconhecer que esses países que mencionei compartilham um elemento importante, pois todos usam um sistema alfabético, que, portanto, tem um mesmo princípio de que letras representam sons.

Ainda assim, temos o exemplo de Portugal, que tem a mesma língua que o Brasil e que implementou mudanças significativas na alfabetização, baseadas nas evidências de pesquisas, inclusive tendo a participação do professor José Morais — que também ajudou nas reformas promovidas na França. O Prof. Morais participou também de um esforço no mesmo sentido no Brasil, pois trabalhou em um grupo, em 2003, liderado por João Batista de Oliveira, que, a convite da Câmara dos Deputados, estudou a questão da alfabetização.

Naquela época, todos estavam se preocupando com essa questão de incorporar as evidências de pesquisa para melhorar a alfabetização, como já mencionei. Vários países preparavam relatórios científicos para embasar suas políticas públicas de alfabetização e o Brasil não ficou para trás. Participaram desse relatório Jean-Émile Gombert, da França; Marilyn Jager Adams, dos EUA; Roger Beard, da Inglaterra; o Prof. Fernando Capovilla, da USP; e a Prof.ª Cláudia Cardoso-Martins, da UFMG, que é uma das maiores pesquisadoras brasileiras na área da alfabetização, respeitada na comunidade científica internacional.

Infelizmente, esses relatórios foram ignorados, por muitos anos, embora apresentassem uma excelente revisão da literatura com recomendações claras e fundamentadas em evidências sobre as mudanças necessárias à alfabetização no Brasil. No entanto, felizmente, após ter sido apresentado a esses dados pelo Secretário Nadalim, o Ministro Ricardo Vélez acolheu-os e anunciou, no Senado, que estamos resgatando essas importantes contribuições na formulação da nova Política Nacional de Alfabetização.

Nesse mesmo sentido, o Secretário de Alfabetização Carlos Nadalim sempre enfatiza a importância de considerarmos as evidências científicas na formulação de Políticas Públicas, como se pode observar na estrutura da nova Secretaria de Alfabetização. Ele convidou para compor a Diretoria de Alfabetização Baseada em Evidências três cientistas que estudam alfabetização, entres os quais eu me incluo.

Eu comungo do pensamento do Secretário Nadalim e do Ministro Vélez de que a educação brasileira se fundamente em evidências científicas. Isso implica pelo menos três coisas: 1) o que sabemos hoje pode ser invalidado ou questionado amanhã por uma nova pesquisa ou evidência; 2) os resultados de pesquisas devem ser sempre contextualizados: precisamos entender os limites das pesquisas e da generalização dos resultados; 3) não podemos personalizar as evidências e adotar ídolos somente porque produziram trabalhos relevantes em algum momento.

A ciência não para e é preciso ir mais além, considerar o tempo atual e o que se sabe, com base no método científico, naquilo que há de mais vigoroso atualmente, sem personalismos, mas sim com base nas evidências. É assim que os países que tiveram sucesso mudaram seu modo de ensinar a ler e a escrever e é assim que o Brasil pode também ir mais longe.

Perfil – Renan de Almeida Sargiani é pós-doutorando em Educação (Linguagem e Alfabetização) na Harvard Graduate School of Education e pós-doutorando em Psicologia no Departamento de Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade, no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). Doutor em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano no Instituto de Psicologia da USP, com período sanduíche no Ph.D. Program in Educational Psychology na City University of New York. É Membro da European Literacy Network (Rede Europeia de Alfabetização); do Grupo de Trabalho Desenvolvimento Sociocognitivo e da Linguagem da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia (ANPEPP); da Psychology Coalition (Coalizão de Psicologia) na ONU; e membro da mesa diretora da International Association of Applied Psychology (IAAP). Ele trabalhou para a Sociedade Interamericana de Psicologia (SIP) e a para a International Union of Psychological Sciences (IUPsyS).

Assessoria de Comunicação Social MEC